Aqui eu posto algumas observações inspiradas pela leitura da entrevista que a geógrafa Odette Seabra deu sobre as várzeas da cidade de São Paulo - e que eu postei aqui no post anterior.
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Antes de mais nada:
A tese de doutorado da professora ("Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder: O Processo de Valorização dos Rios e das Várzeas do Tietê e do Pinheiros") é uma pesquisa muito valiosa para quem tem interesse em entender a lógica da ocupação do território da cidade de São Paulo e o processo de transformação dos rios e das várzeas do Rio Tietê e do Rio Pinheiros. Embora ainda não tenha sido publicada em livro (talvez algum dia ainda publiquem! Eu seria a primeira a comprar o livro!), e não seja fácil encontrá-la na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) pelo fato da tese estar sempre retirada e ainda não ter sido digitalizada para acesso fácil pela internet, só posso recomendar a sua leitura! O trabalho desvenda de forma clara e corajosa uma lógica perversa de ocupação territorial que existe até hoje na cidade de São Paulo - e que normalmente fica velada, pois não é interessante para as elites que ela seja desvendada.
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Trecho da entrevista em que a professora responde se se surpreendeu com a grande enchente do dia 8 de dezembro de 2009 na cidade de São Paulo:
"Fiquei, como todo o mundo, constrangida e indignada. É insuportável saber que somos obrigados a viver essas tragédias ano após ano. Mas não posso dizer que as imagens me surpreenderam. As medidas que vêm sendo tomadas desde 1999 são corretas. Mas ocorre que a capacidade do Tietê está no limite."
As medidas para mitigar as enchentes em São Paulo que vêm sendo tomadas nas últimas décadas infelizmente seguem um modelo absolutamente ultrapassado. Talvez elas sejam até corretas do ponto de vista da lógica daquele modelo, mas aqui não tem como eufemizar ou fazer concessões: se o modelo está equivocado, então as medidas também estão.
Não é apenas a capacidade do rio que está no limite, todo o modelo de drenagem é um erro.
Comentário da professora sobre a dificuldade de achar "culpados" pela sofrível situação:
"Se a gente tem noção da história, fica ingênuo discutir se quem fez as marginais também foi responsável por esses equívocos. Mas, com o partido rodoviário sendo adotado como modalidade de transporte nacional, a sequência só poderia ter sido essa. No caso da Light, é preciso levar em conta também que éramos uma República nova, sem conhecimento de estruturas jurídicas, com uma sociedade pouco aparelhada para negociar com o trust. Não que, por princípio, as pessoas fossem boas ou más. É um processo."
Interessante. Essa colocação bate com a do Prof. Paulo Pellegrino (FAU-USP) numa entrevista concedida ao Portal Terra no período de graves inundações em dezembro do ano passado: "Identificar um único culpado é muito difícil porque na verdade nós estamos numa realidade urbana muito complexa, que foi montada através dos anos por uma série de opções e decisões tomadas durante todo o último século de urbanização de São Paulo. Não dá para identificar um culpado. O que nós podemos apenas é ver porque nós continuamos a insistir em modelos já ultrapassados."
Na entrevista o Prof. Paulo explica tim tim por tim tim porque o modelo é um equívoco - e fala sobre alternativas. Aqui alguns trechos da entrevista: "A visão da drenagem urbana como eliminação da água da paisagem foi durante um bom tempo, e continua sendo, o mote de todo o tratamento que se tem da água urbana da cidade. Todos os córregos, todos os rios, todos as áreas construídas, todas trabalharam e trabalham com o intuito de se livrar da água da forma mais rápida possível. (...) E esse é o ponto de vista que não deu certo. (...) Ao invés de nós querermos nos livrar das águas, nós poderíamos aprender a conviver com elas. São Paulo é uma cidade das águas. Uma cidade que tem no seu nome o Rio Piratininga que na sua origem significa "terra dos peixes".(...) Para reter e retardar o escoamento das águas urbanas é preciso trabalhar com a "pele" da cidade, a cidade deve ser vista como uma grande esponja. (...) Enquanto a cidade for vista como uma superfície impermeável, dura, sem nenhum tipo de permeabilidade e voltada para a retificação dos cursos d'água, da eliminação das águas, você sempre estará criando um problema. (...) Você teria que começar a trabalhar com os pontos em que a cidade ainda permite ser reorganizados, reprojetados, para que ao invés de eles expulsarem as águas, eles retenham, e nesse conjunto de processos evitem que as águas se acumulem nos pontos mais baixos."
Quanto à ampliação das novas marginais em São Paulo, o tema também merece uma avaliação mais ampla. Nesse ponto, assim como em relação ao fato do modelo de drenagem da cidade de São Paulo estar ultrapassado, há a necessidade urgente de mudança de paradigma.
Em resposta aos comentários do governador sobre o debate da Nova Marginal ("Qual é a proposta deles? Destruir as marginais? E o pessoal vai andar de burrinho para ir até Guarulhos?"), o arquiteto Fernando de Mello Franco no texto "É preciso saber avançar na construção da urbanidade em São Paulo" responde e vai direto ao ponto:
"Não há dúvida de que as tropas de mulas foram fundamentais para nossa história. Ampararam as incursões coloniais que desbravaram nossa hinterlândia. Permitiram transgredir o Tratado de Tordesilhas, o que resultou na formalização do território nacional em sua dimensão continental. Mas trata-se de uma alternativa anacrônica, assim como a promoção do sistema de transporte individual, baseado em energias poluentes, também o é. (...) Todos sabemos o quão nocivas são as rodovias, quando implantadas no interior do tecido da cidade. E esta parece ser parte da questão: pensar as marginais como sistema rodoviário, sem olhar para o fenômeno metropolitano como um todo. (...) É preciso saber avançar no enfrentamento das questões trazidas pela contemporaneidade, ao invés de permanecermos no erro histórico do modelo de avenidas de fundo de vale. Vivemos um momento especial na história das cidades. A “cidade moderna” cede espaço para a “cidade contemporânea”, permitindo-nos pensar a mudança. No caso de São Paulo ela pode ser feita, estrategicamente, sobre a atualização das formas de uso da estrutura complexa das suas várzeas. (...) Há um acervo valiosíssimo de reflexões acadêmicas produzido pela USP, entre outras universidades. Esse acervo é enriquecido pelas pesquisas financiadas pelos órgãos de fomento, como a Fapesp. Há ainda os registros do “Urban Age”, evento que contou com o apoio oficial do Estado. O resultado foi a publicação, pela Imprensa Oficial, da pesquisa que a London School of Economics vem realizando sobre nosso futuro urbano. Nesses textos, o debate se afasta da manutenção do sistema “rodoviarista” como solução responsável. Portanto, as alternativas que o governador solicita existem e podem ser facilmente acessadas por aqueles que as promovem. Essa constatação nos sugere propor uma questão como resposta: qual o melhor caminho para fazer articular o pensamento crítico, financiado pelas instituições públicas, com as ações efetivas do Estado?"
Essa última pergunta do Fernando é pertinente e atual. De que maneira unir críticas construtivas ao sistema (críticas que oferecem novos caminhos e paradigmas) a ações efetivas para a melhoria da realidade? Não faltam bons projetos e soluções: de que maneira então colocá-los em prática ou, de que maneira convencer o Estado a investir em modelos mais inteligentes que os vigentes?
Quando eu me deparo com a diferença exorbitante entre o que a Academia está pesquisando e o que o Estado está colocando em prática, eu não posso deixar de duvidar secretamente da utilidade da realização dessa tese de doutorado que eu estou fazendo - e que inclusive está sendo financiada pelo próprio Ministério Brasileiro da Educação...
Mas, como a Odette disse, as coisas são um processo. Se elas são um processo, então como parte do processo, está valendo o esforço - nem que esse processo seja o do meu próprio amadurecimento pessoal e eu não esteja viva para ver a mudança do paradigma.