Fonte da imagem: Valor Econômico
Segundo
reportagem da Folha, cerca de 2.000 dos 15.000 m² comprados pela JHSF próximos ao Rio Pinheiros em São Paulo estavam previamente reservados para a elaboração do Parque Linear do Rio Pinheiros ---> para quem nunca ouviu falar do projeto, que na minha opinião deveria ter sido realizado através de um concurso público, pode
baixá-lo aqui. Mas considerando que a área vendida é aquela da figura acima, da antiga vila operária da Light, próxima à Usina Elevatória da Traição, e não como diz a matéria da Folha entre a Ponte do Morumbi e o Hipermercado Extra da Marginal, então creio que mais do que 2.000 m2 foram sacrificados...
Tendo estudado o tema dos rios urbanos por tantos anos, preciso manifestar a minha frustração perante a notícia desse terreno ter sido vendido... essa área é uma das poucas ao longo do Rio Pinheiros em que o espaço entre a marginal e o rio é mais generoso: são quase 200 metros de largura. A largura da área torna-a um lugar estratégico, pois no contexto de um parque ao longo do rio contido entre rodovias como as marginais, é esse um dos lugares-chave que abrigará um grande número de funções, onde processos técnicos, sociais, produtivos, ecológicos e culturais podem coexistir, colaborando para que a cidade tenha uma maior vitalidade.
Na Europa as administrações públicas já se deram conta há muito da importância de se transformar as margens dos rios urbanos em espaços públicos abertos a todos, com equipamentos públicos de qualidade que encorajem a integração dos cidadãos com os rios através de recreação, turismo, circulação lenta (por ciclistas, pedestres), um corredor para a fauna e flora urbanas, para amortecimento de enchentes, para melhora do clima urbano, para servir de palco de interação entre cidadãos de diferentes classes sociais e graus escolares, e mais um monte de outros benefícios.
A questão do Rio Pinheiros ser poluído não é uma desculpa para que suas margens sejam entregues na mão do poder privado — o acesso ao rio deve ser público. Muitos rios europeus eram tão poluídos quanto o Pinheiros e o Tietê, e isso não impediu que administrações públicas privatizassem suas margens e investissem no seu redesenho durante a fase de desindustrialização — antes mesmo que os rios estivessem completamente limpos, as margens receberam passeios públicos e as pessoas começaram a se apropriar desses espaços, o que levou a uma conscientização e pressão pública pela definitiva melhora da qualidade da água e dos acessos aos rios. Foi um processo lento, mas que cada vez mais se solidificou: hoje os rios urbanos de muitas cidades européias são espaços públicos por excelência que reforçam a identidade da cidade, motivo de orgulho para os cidadãos
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O potencial do Rio Pinheiros não é menor do que o de nenhuma das cidades européias às quais me refiro (Lyon, Düsseldorf, Londres, Colônia, Paris, Munique, etc.). O Pinheiros, assim como o Tietê e os vários outros cursos de água que estão escondidos na paisagem urbana de São Paulo, só precisa ter seu potencial reconhecido e valorizado. Para isso é preciso encorajar projetos e visões que reforcem o caráter público do rio e explorem as diversas funções que suas margens podem desempenhar, ao invés de entregar o ouro na mão do poder privado.
A EMAE, uma empresa de capital misto, ao vender uma propriedade que tem tamanha importância como patrimônio público, está agindo segundo interesses privados para aumento do lucro de seus acionistas. Tiarajú Pablo D'Andrea escreve na sua dissertação de mestrado sobre a posição ambígua da EMAE, que por um lado reconhece a importância do redesenho do rio urbano ao encomendar um projeto de Parque Linear do Rio Pinheiros e por outro lado vende parte da área reservada a esse parque para o poder privado (
Tiarajú Pablo D'Andrea. Nas Tramas da Segregação. O Real Panorama da Pólis):
"Neste ponto, o que é importante reter para este estudo é justamente a ocupação dos cargos da empresa mista por funcionários públicos defendendo interesses privados. Interesses expressos na venda das propriedades da empresa para aumento do valor das ações de forma a trazer dividendos a esses acionistas, que por sua vez, por serem Conselheiros da EMAE, recebem R$ 4.440,00 de salário. Como se fosse pouco, a maioria desses conselheiros ainda acumulava algum outro cargo público em secretarias do Governo do Estado. Contudo, apesar da origem pública desses funcionários-conselheiros, quando da deliberação de assuntos referentes a EMAE, a racionalidade utilizada era “empresarial”, como havia colocado o Diretor Administrativo. (...) Empresa mista, expressão ímpar das confusas fronteiras entre o público e o privado, a EMAE por muitas vezes demonstrou ser um objeto de difícil análise, justamente por seu caráter necessariamente ambíguo. Seguem dois pequenos exemplos: em reunião com moradores da favela Real Parque, uma Diretora da EMAE afirmou: “em último caso, quem decide é o Governador”, ou seja, a frase expressava um caráter de uma empresa subordinada aos ditames do poder público. Sua face privada seria exposta, por exemplo, na possibilidade da efetuação de usucapião em suas terras, possível de ser aplicada apenas em terrenos privados, e não públicos. Contudo, cabe ressaltar que é justamente essa lógica ambígua da empresa mista o que a caracteriza." (D'Andrea 2008, pp. 110 e 111)
Segundo o artigo da Folha, a venda foi feita por "'decisão 'administrativa', uma vez que a área não tinha mais funções operacionais". De fato, a antiga vila operária da Light, localizada próxima à Usina Elevatória da Traição, está com suas casas em desuso há muitos anos. Mas isso certamente não justifica a venda de um patrimônio público que apenas por uma questão de tempo ainda não transformou-se num parque aberto aos cidadãos e visitantes da cidade de São Paulo.
O artigo prossegue: "A Folha apurou que a JHSF propôs ao governo viabilizar o parque entre as pontes Cidade Jardim e Morumbi. O acordo está em andamento". Isso também é preocupante. Além de uma das áreas-chave do parque linear ter sido vendida, pretende-se confiar às mãos do poder privado a realização de parte do parque. Os cidadãos já foram "traídos" uma vez, a EMAE pretende uma nova traição?
Addendum:
Não se trata de condenar parcerias público-privadas. Há muitos exemplos positivos de projetos urbanos que só saíram do papel devido a tais parcerias. Mas a administração pública tem que acionar uma equipe qualificada para coordenar o projeto e garantir que os interesses públicos não sejam prejudicados perante os privados. Quando a requalificação de espaços públicos é bem conduzida, tanto a cidade como os donos de terrenos podem lucrar.
No caso da EMAE/JHSF é preocupante a velocidade com que as coisas têm sido decididas. A sociedade civil não está sendo envolvida na discussão do projeto, que devido à sua importância, deveria estar sendo refletido em noticiários, em reuniões abertas ao público, questionários sobre os anseios, desejos e críticas da população, oficinas, workshops e charretes de projeto. Trata-se de 50 km lineares de parque, contando os dois lados do rio... um projeto dessa envergadura deve naturalmente passar por um processo de decisão que seja o mais democrático e transparente possível. Isso torna o processo mais lento, mas eu quero crer que todos concordam que a democracia é um preço válido a ser pago — a qualidade do projeto melhora, o interesse e participação da sociedade aumenta, a aceitação dos resultados é maior, paternalismo institucional e arbitrariedades são reduzidos.